Doce Amianto – Um Filme

18/02/2013

por Ricardo Pretti

Doce Amianto não é um filme feito para se pendurar na sala de casa, e muito menos, é um filme que pertence a um altar; não serve pra mercadoria e nem pra idolatria. É um filme pobre, mais facilmente encontrado no lixo, que prefere ser rejeitado e descartado, não porque despreza o mundo em que vive, mas justamente o contrário, porque é um filme de coração aberto, transparente, sem medo de expor a sua carência e o seu desejo febril por afeto, por romance e por sexo. Estamos diante de algo completamente fora de moda, totalmente distante da cultura do cinismo travestido de lucidez e maturidade, dos filmes com esquemas narrativos “inteligentes” e calculados, voltados apenas para a evidência de si, vaidosamente. Ao contrário, o que vemos, em Doce Amianto, é um filme que eleva a sua alma ao status de carne por um procedimento de entrega visceral ao mundo (matéria feita de sentimento). Obra que nasceu do encontro entre um poeta e um cineasta. Os dois amam a vida e a arte. Os dois artistas souberam viver a solidão que cabe a todo artista, mas também souberam festejar os encontros com muita alegria, como filhos de Baco que são. É um filme que existe sem ter que levantar bandeiras, sem nenhuma necessidade de organizar denúncias, mas nem por isso deixa de nutrir e trabalhar a sua convicção por atingir um estado de pureza na relação com o mundo, pois o filme é a expressão genuína da obsessão amorosa. Através de sua personagem-título, o filme faz um elogio às paixões loucas e excessivas, e logo, também às rejeições amorosas sem sentido, que causam tanto sofrimento e nos jogam num abismo entre a vida e a morte, experiência inescapável para todo romântico incurável. Doce Amianto nos proporciona variações sobre o amor na sua idade mais jovem, quando nos damos o direito a ter rompantes de desespero e quando idealizamos o nosso objeto de desejo por mais frustrante que sabemos o quanto isso pode ser. No meio de todo esse desvario amoroso, o filme muito habilmente introduz uma nova personagem, a Blanche, melhor amiga de Amianto e fada, pois também estamos numa fábula. Quem foi criança e sozinha sabe quem é a Blanche, aquela amiga imaginária, de tão real, que aparece nos momentos de maior tristeza pra trazer alegria e fazer cócegas em você. Quem foi jovem e passou dias, semanas, meses no quarto escutando música, assistindo filmes, cheirando cola e fumando maconha também sabe quem é a Blanche, aquela companheira indispensável que te acompanha nas viagens mais extravagantes da loucura juvenil. E quem é adulto e sabe carregar no agora as marcas do que já viveu e passou sabe muito bem quem é a Blanche, esse fantasma íntimo e infinito que nos encara na eternidade refletindo o nosso enigma, a própria existência. É através da Blanche, ao meu ver, que o filme mostra toda a sua originalidade. Blanche incorpora muitos procedimentos narrativos (o inconsciente de Amianto, mas em outro momento uma narradora e ainda uma conselheira-amiga, aparição, poesia, etc.) regados a pequenos espasmos de um puro lirismo encantado (nas mãos e nos olhos), e nós assistimos a isso sempre através da beleza inenarrável dos diálogos trocados entre ela e Amianto, diálogos nunca antes visto no cinema, e que espero muito sirva de exemplo para futuros filmes. E com um simples “era uma vez” da Blanche a roda da ficção continua a girar, e como em muitas outras ficções antes navegadas, Doce Amianto se permite uma ousada digressão, fragilizando totalmente a obsessão amorosa cíclica (cíclica como na música de Bach: variações, prelúdio e fuga) da estrutura narrativa que vimos até então (e continuaremos vendo depois dessa digressão), abrindo uma brecha, fazendo da noção de continuidade lógica um furo (um f de falso). É o filme se permitindo uma elipse subversiva no estilo surrealista de Luís Buñuel. Nada mais adequado para dar conta do que veremos a seguir: a adaptação de uma crônica de Charles Bukowski, escrita para um jornal de Los Angeles, onde o escritor entregava textos semanalmente, e por isso mesmo, onde ele aproveitou pra exercitar intensamente o surrealismo-non-sense na sua escrita, tanto na forma (muitas vezes lembrando a escrita automática) quanto no conteúdo, narrando histórias absurdas com o máximo de naturalismo (nada distante de Buñuel). O filme dentro do filme vai do seu jeito traduzir muito bem o que tem de fantástico no banal, principalmente nas cenas em que ele está em seu apartamento sozinho após a descoberta de que ele não é mais quem ele achava que era, pois ali, é através da economia de gestos e da criação de uma atmosfera onde se atinge um efeito de estranhamento, onde contemplamos (nós e o personagem) o grande absurdo que é a vida humana. E o mais bonito, e ao mesmo tempo espantoso, de perceber nesse filme, é que por dentro dessa fábula surrealista, Doce Amianto se revela um filme totalmente comprometido com o real. Não com o realismo das convenções dramáticas de nossa época, mas com a criação de um mundo onde as questões e os desejos são possíveis. Eu saio do filme com a certeza de que tudo visto ali realmente aconteceu e foi vivido! Amianto é uma personagem possível, que resiste e nos faz sentir a sua resistência (a cena da boite culminando na dança é exemplar nesse sentido). O filme está há anos-luz distante do cinema de ideologia publicitária. E isso me parece vir de uma postura ética que diz muito da poesia do filme, pois os diretores sabem que estão fazendo um cinema underground e pobre, mas que dialoga intensamente com o pop e com os anseios da cultura pop. Doce Amianto pode ser um ‘make it new’ do Andy Warhol e Kenneth Anger, que realizavam filmes com amigos e amantes imprimindo em cada frame uma luz confessional que aconchegava todas as outras ambições possíveis. Doce Amianto é um filme bêbado de realidade. Como diz Leonilson-Uirá-Guto no começo do filme: “Voilà mon coeur”.

 

Ricardo Pretti

PS: Agradeço imensamente Julia De Simone pelas inúmeras leituras atentas e conselhos essenciais durante os dias de escrita desse texto.