Entrevista cedida aos curadores do Festival de Vitória

16/11/2013

 

Respondi essas perguntas a pedido dos curadores Erly vieira Jr. e Rodrigo de Oliveira do Festival de Vitória por ocasião da exibição do Não estamos sonhando na cometitiva de curtas. Por razões técnicas a minha entrevista não entrou no site com as dos outros realizadores (isso pode ter acontecido com outras entrevistas. Senti falta de uma com o Marcelo Caetano, que é uma que eu gostaria de ler). Como me dei o trabalho de responder resolvi publicá-las aqui caso alguém tenha interesse em ler.

(Luiz Pretti)

Caro realizador,

 

É uma imensa satisfação ter seu filme na seleção oficial do Festival de Vitória, neste ano em que completamos 20 anos de existência. Como curadores, trataremos de seu filme nos textos do catálogo que abrem a listagem dos selecionados de cada uma das mostras competitivas do festival, e também nos debates, sempre mediados por nós mesmos. Ao mesmo tempo, sentimos que é importante abrir espaço para que você, realizador, fale sobre seu filme e possa assim expandir a experiência dos frequentadores do festival e dos espectadores de seu filme, além de uma chance de dialogar, pela palavra escrita e impressa, com seus pares e os filmes de cuja safra seu trabalho faz parte. São raros os momentos em que os realizadores de curta-metragem tem a chance de falar sobre suas obras, e é esta oportunidade que aproveitamos aqui com este questionário, que será usado para compor as páginas de seu filme no site oficial do evento. O conjunto dessas respostas permitirá traçar um panorama sobre a atual produção de curta-metragem no Brasil, além de complementar a fortuna crítica sobre nossa produção audiovisual. Agradecemos desde já a dedicação nas respostas.

 

Erly Vieira Jr. e Rodrigo de Oliveira

Curadores

 

 

1) Seu filme é inédito em mostras competitivas? Se não, por quais festivais passou e quais prêmios eventualmente ganhou?

 

O filme teve a sua estreia no Festival de Roma do ano passado para logo em seguida ser exibido no Brasil na Semana dos Realizadores onde ganhou o prêmio especial destaque de realização. O filme foi exibido em festivais no exterior (Ficunam e Hollywood Brazilian Film Festival) e outros no Brasil (Festival do Rio, Janela Internacional de cinema do Recife, Festival Internacional de curtas de São Paulo, Mostra Tiradentes, Mostra do Filme Livre, Goiânia Mostra Curtas e outros). Além disso, como forma de explorar alternativas de exibição dos nossos curtas, o filme ficou uma semana em cartaz na internet, nos sites da Alumbramento, Revista Zagaia, Vurto e Sincera forma do mundo, onde ele foi visto por mil pessoas.

 

2)  Qual sua formação e a trajetória no cinema até a realização deste filme?

 

Larguei a faculdade de cinema no segundo período e fui fazer cinema por conta própria. Já se passaram mais de dez anos desde os primeiros curtas que fiz na vida e nesse tempo produzi muito. Nos caminhos que percorri, tive muita sorte e encontrei pessoas que me completam, me ensinam e me estimulam (no sentido de provocar) a continuar fazendo cinema. Junto com elas fiz a Alumbramento (produtora e coletivo). Fizemos muitos filmes e quem quiser conhece-los pode entrar no site (www.alumbramento.com.br), onde se pode conhecer uma parte do nosso trabalho e assistir uma parte da nossa produção.

 

3) Com que recursos/ fontes de financiamento o filme foi feito?

 

Esse filme não teve financiamento algum, mas ele teve apoios fundamentais para a sua realização. A Teia + Anavilhana apoiou com o seu equipamento de câmera e lentes com a qual Clarissa Campolina fotografou; o Grivo apoiou com o estúdio 5.1 deles onde a mixagem final foi feita com o trabalho inestimável do Gustavo Fioravante como editor de som e mixador. O filme foi montado na minha própria ilha de edição.

 

4) O que lhe motivou a realizar seu filme e que proposta estética você apresenta nele? Fale sobre a idéia original do projeto e sobre sua visão do filme, hoje, uma vez que ele já tenha sido concluído e exposto a diferentes platéias.

 

A revolta que sentia perante as transformações radicais pela qual o bairro onde morava passava foi o estopim para a feitura desse filme. Certos filmes surgem de um lugar muito íntimo, de uma necessidade vital de colocar para fora certos pensamentos, ou ainda, pôr no cinema um pouco do que vives, do que te inquieta, e assim, dar forma ao que queres dizer enquanto artista (uma crença ferrenha, mesmo quando abalada, na capacidade de transformação do mundo através do cinema). Nesse sentido Não estamos sonhando é um filme-ensaio. É uma maneira que encontrei de organizar as ideias e ao mesmo tempo exercitar cinema de forma espontânea, mas não por isso menos rigorosa e cuidadosa. Estive em poucas sessões do filme então fica difícil ter alguma conclusão mais clara de como o filme dialoga com as plateias, mas tenho a impressão que a minha insurreição contra essa política de especulação urbana e imobiliária devastadora é compartilhada por muita gente no Brasil, e que o espectador gosta da maneira divertida com que solucionei as explosões desses prédios.

Mas no momento seguinte do filme passamos por uma reviravolta, uma espécie de queda do cavalo desse personagem quixotesco, uma volta ao silêncio austero do começo do filme, que dessa vez será irrompido por um grito desesperado que é ao mesmo tempo a constatação dos limites da imaginação e a reafirmação de sua potência. Não sei como as pessoas entendem o final do filme, isso ainda é um mistério pra mim. Talvez algum dia alguém se dispõe a falar ou escrever sobre ele. De qualquer forma, a minha visão do filme hoje é muito parecida com a que tinha no começo quando resolvi filmá-lo.

 

5) Como você descreveria sua maneira de fazer filmes, seu modo de produção? Como você pensa o tipo de cinema que está realizando?

 

A maneira de fazer e o modo de produzir filmes varia a cada projeto. Eu pretendo passar a vida variando. Consigo me expressar enquanto cineasta em condições de produção muito diferentes e isso me permite filmar com mais constância (o que pra mim é essencial). Na verdade acho que existe apenas uma forma de fazer ou produzir filmes, aquela que permite o filme ficar pronto da melhor maneira. Para isso é necessário encontrar um equilíbrio na equação filme (obra estética) e produção. Basicamente é saber o que o filme exige em termos de produção para que ele consiga ser realizado (não dá pra querer fazer um blockbuster com 50 mil reais e nem o contrário, um “filme de arte” com 5 milhões).

Agora, por outro lado, sinto a necessidade cada vez maior de fazer filmes onde eu possa contar com uma equipe mais completa do que eu estou acostumado (o que não quer dizer 50 pessoas no set). Isso só é possível com financiamento, pois eu quero as melhores condições pra quem for trabalhar comigo e é essencial que elas recebam pelo trabalho delas. Portanto, se torna cada vez mais necessário encontrarmos meios de financiamento variados. Acho que isso é bem possível, é uma questão de trabalho, persistência e criatividade.

 

6)  Quais filmes, cineastas ou outros produtos culturais serviram-lhe de referência na produção deste trabalho? Com que outros cineastas, brasileiros ou estrangeiros, você aqui dialoga?

 

A maior referência desse filme foi a Nicole Brenez. Ela é uma crítica/teórica brilhante e apaixonada. Ela consegue de forma muito simples colocar o cinema em prol da luta pela libertação, tanto política quanto estética. Ela vê o cinema como uma arma contra toda força opressora e pra isso ela se liberta inclusive da facilidade em fazer aproximações dos filmes dentro da lógica do sistema predominante (cinema de gênero, por exemplo). Assim, ela pode aproximar o Stan Brakhage do René Vautier sem isso parecer contraditório, pois a luta se dá contra toda forma de tirania, seja a França colonialista ou a produção de imagem hegemônica. A Brenez cita muitos cineastas obscuros em seus textos e isso me levou a ver filmes que eu desconhecia como Avec les sang des autres, Serial killer, Ça sera beau, from Beyrouth with love, Black liberation, Afrique 50. Tem ainda alguns filmes que fazem parte da minha formação, e me levam a fazer esse filme, como À propos de Nice (todo o Vigo na verdade), Um homem com uma câmera, Rien que les heures, Godard, etc.

Mas uma das primeiras motivações foi a vontade de colocar um filme no Sincera Forma do Mundo depois de ver as coisas que o Gabriel Martins (Gabito) mostrou por lá e que eu admiro muito pela inventividade casual com a que ele trabalha a imagem e o seu escracho espontâneo e divertido. Ainda aqui no Brasil tem o Marcelo Pedroso que é uma referência constante pra mim. Tem as trocas inestimáveis com o Thiago Mendonça e o Tiago Mata Machado, as mostras que o Ewerton Belico cura para o Forumdoc BH e os filmes que ele me indica, além dos meus eternos parceiros da Alumbramento (isso me atendo aos que tem uma ligação maior com o universo desse filme). Mas as referências e as influências não são diretas, não é para vê-las no filme, elas formam um imaginário ao qual eu recorro de forma muito livre, inclusive na hora de evoca-las aqui. O filme tem a sua própria lógica interna que independe de referências, mas e ao longo das filmagens ainda passou pela minha cabeça Ozu, Antonioni, John Huston, Ferrara, Fountainhead do Vidor e sei lá mais o quê. Vai entender a lógica disso.