SEMANA SANTA, LEO AMARAL E SAMUEL MAROTTA

22/04/2014

 

Elogio da profanação[1]

Por Érico Araújo Lima

 

Existe todo um ritual que Semana Santa inventa. Mas não é o ritual instituído e esquadrinhado previamente, é um ritual que passa necessariamente pela mediação de todo um trabalho cinematográfico, é uma encenação que interfere e desvia um determinado fluxo de corpos, de falas e de ocupação da cidade. É a própria presença dos diretores Leonardo Amaral e Samuel Marotta, os forasteiros fantasmas, introduzindo outros ritmos em meio à multidão das procissões, elaborando outros olhares que são encontrados pela câmera. É a digressão que se acentua progressivamente no sentido do espírito provocador que marca uma tomada de posição do filme no mundo, rumo à criação de uma escritura fílmica de liberdade. É um processo que vai se constituindo e extraindo do encontro com a teatralidade da paixão de Cristo os elementos para um filme de intervenção, aquele que vai permeando todo um mundo resolvido internamente de modo mais ou menos constante e contínuo, com uma infinidade de desmedidas, desregramentos, batidas dissonantes em um coro harmônico.

 

Os elementos da composição, nessa nova toada que a encenação inventa, vão se apresentando aos poucos. Tudo parece se elaborar como um tateio em caminhos, uma descoberta de estratégias no percurso mesmo do fazer a obra. O filme nunca se dá por inteiro, ele nunca antecipa o porvir da jornada, os elementos vão ganhando uma forma, sendo postos em reunião, num arranjo que é experimentado no processo mesmo da tessitura. A sequência bastante emblemática da celebração dos corpos na piscina concentra uma das forças singulares no trabalho dessas imagens. Ela já demarca uma certa descontinuidade naquilo que vinha se desenrolando até então na tela e joga o espectador definitivamente em um ritual completamente descentrado e delirante. Alguns dos personagens que já apareciam caracterizados como figuras da Igreja surgem, dessa vez, com outra modalidade de presença. Eles estão agora decisivamente dispostos para uma nova ordem de encontro, um derramar-se pelo espaço, uma investida contra as separações para uma aposta radical nos efeitos de contágio.

 

As escolhas dos dois planos centrais desse momento podem dizer muito dessa abertura para que as coisas aconteçam aos corpos na cena. É que o quadro inicial fixo e o longo plano posterior, em que a câmera está imersa em meio a todo mundo, se movimentando livremente, permitem a constituição de uma cena tomada pelas intensidades intempestivas dos gestos de cada um, dos movimentos, das entradas e saídas de quadro. O plano, nesse caso, não é um enclausuramento, mas um desencadeador de volteios, um ativador de inscrições dentro e fora do campo. Toda uma nova dramaturgia passa a se processar repentinamente, pautada pelo canto e pela alegria de colocar-se em contato. O ritual da piscina já é bem diferente do ritmo compassado daqueles que andam em procissão pelas ruas, das linhas bem dispostas e da repetição uníssona das oblações. O ritual da piscina é o momento em que todo mundo junto desorganiza o espaço, embaralha as coordenadas. Ao experimentarem uns aos outros, os corpos propiciam também um campo aberto de sabores a serem descobertos na textura da imagem.

 

E toda essa sequência é apenas um fragmento de um conjunto de blocos que vão se sucedendo, inserindo tensões e variações na estrutura. O caráter mais documental dos primeiros instantes do filme logo cede lugar ao trabalho da ficção que opera uma sobreposição de mundos naquele do universo constituído, permeado pela tradição que vem tanto de uma centralidade irradiadora de posturas quanto das apropriações pelos corpos, memórias e vozes populares. É já o próprio espetáculo instituído da semana santa que não deixa de passar também por uma construção ficcional, ritualística na sua repetição ao longo dos anos, memorialística na sua retomada de um conjunto de lembranças elaboradas coletivamente, dramatúrgica na disposição mesma de lugares, ações e corpos. Existe, então, um constante entrelaçamento entre essa cena que a cidade toma para si, fazendo circular pelas ruas homens e mulheres que enunciam diálogos solenes, e a cena que o filme faz surgir.

 

Dessa maneira, o que o filme Semana Santa passa a instaurar são também novas camadas aos modos de experimentar um espaço e um tempo. A via da provocação é bastante evidente, mas nunca parece se tratar de um julgamento. Existe mesmo um jogo de relações que se tenta criar, sobretudo com a cidade do interior em que se passa boa parte das ações. Dores do Turvo, Minas Gerais, é vista em uma transição da noite para o dia, em uma passagem pelas performances públicas e também pelas encenações no interior da igreja, quando a refeição em torno de uma mesa vira mote para brincadeiras com as figuras do clero, entre freiras, padres e um cardeal. O tom irônico modula os percursos, ao mesmo tempo em que permite um atravessamento entre os forasteiros fantasmas e as pulsações próprias desse tecido urbano que parece se orientar, nesses dias, pela marca do sofrimento, da culpa e da cruz. Depois de a Paixão colocar três homens pendurados em cruzes, os próprios realizadores vão também experimentar esse lugar, posicionando-se nas duas extremidades e deixando a cruz central vazia. Eles colocam os próprios corpos ali por um instante, saem e retornam para a cidade.

 

E ainda vamos nos deparar com a performance de um violonista que canta em um bar, circulando em plano-sequência, desencadeando todo um acontecimento, misturando o português e o inglês, inventando outras línguas e, principalmente, espalhando toda uma expressividade com o rosto, com a voz e com os gestos. Toda a profusão de elementos que sacodem a obra produz uma dupla dinâmica, que inventa, de um lado, uma nova iconografia, ao mesmo tempo em que desencadeia, de outro, um forte espírito iconoclasta. É uma zona de paradoxos que são enfrentados com singular vitalidade no cinema brasileiro recente. Uma zona que põe em defasagem um mundo instituído que o filme deseja tensionar, mas não para impor uma resposta dada e pronta. São imagens postas em crise, para que outras possam ser fabricadas, na medida mesma em que a pesquisa transcorre. O desenrolar do percurso é processual, é um regime de imagens que se acrescenta a outro, um ritual que entra em fase com outro. É um Semana Santa, esse que o cinema propicia, que entra em fase com uma semana santa, essa que os processos de institucionalização e sacralização estabelecem. E ele faz dela um novo uso, profanando-a e resgatando daí a possibilidade de um contágio mais vital com o mundo.


[1]   Tomo aqui emprestado um título que é, originalmente, de Giorgio Agamben.