Vida, de Paula Gaitán (Brasil, 2008) 

22/05/2014

Crítica de Francis Vogner dos Reis

http://www.revistacinetica.com.br/vidagaitan.htm

 

Estética da generosidade

Quando em cinema se fala em “risco calculado” naturalmente se pensa em um filme falsamente radical, que se preocupa em empreender uma busca estética dentro dos limites do suposto bom senso e que não transgrida a medida entre a liberdade artística e a adequação a modelos consagrados por outros cineastas. Coisa de quem tem vergonha de ser ridículo e medo de ser incompreensível. Ou seja: radicalidade em terreno seguro é moeda fácil. Só que quando se trata de arte, a segurança não é uma atitude estética muito digna – mas, dependendo do projeto, o bom senso sim. Às vezes o risco calculado (ou melhor, o risco consciente) impede que o filme enverede pela pura e simples sandice, pela experimentação (estéril) que não respeita a integridade do material.

Pois se em Vida existe o que podemos chamar de “risco calculado” (ou consciente) é porque se pretende fazer não uma biografia ou uma mera homenagem afetiva à atriz Maria Gladys, mas um retrato poético. Onde estariam o risco e o cálculo ai? O risco está em dar imagem a uma série de sentimentos. Como se sabe, o cinema raramente lida bem com as coisas que não são concretas. Por isso, se por um lado temos algumas imagens que optam pela procura da beleza ao invés da busca do sentido (da analogia, do contraste fácil), por outro temos um “estudo de personagem” muito objetivo. Maria Gladys pensa sobre si e sobre o passado. Ela fala de sua gênese artística e das experiências que a conduziram até ali. Em princípio esse gosto por lembrar do que passou não é ruim nem bom por si. Hoje, temos desde a necrofilia dos documentários de Silvio Tendler até o entusiasmo pelo presente que depura as experiências passadas nos filmes de Eduardo Coutinho. Vida é um tanto nostálgico é verdade, mas nada que faça do filme um lamento ou culto a uma personalidade de outra época. Em Vida temos o passado como questão (e questão do presente, sobretudo).

O filme de Paula Gaitán é sobre Maria Gladys, atriz fundamental das décadas de 60 e 70. Enquanto na época Helena Ignez reinventava (e transcendia) sua técnica nos filmes de Sganzerla e Bressane, Maria Gladys fazia de seu corpo uma bomba de energia – ou, como diz ela mesma em Vida, “vontade, emoção e pouca técnica”. Havia um método claro no trabalho de Gladys, mas a impressão era que a atriz fazia da intuição seu impulso rítmico. Não por acaso, temos como os dois filmes que mais fornecem cenas ao filme de Paula Gaitán, Os Fuzis, de Ruy Guerra, e Sem Essa Aranha, de Rogério Sganzerla: dois trabalhos diferentes da atriz, que revelam uma artista que tem consciência de sua relação com a câmera e que sempre construiu, e afinou, seu trabalho a partir de um entrosamento (nem sempre harmônico ou conciliado) com o olhar do diretor.

Paula Gaitán entendeu essa energia da atriz e fez de seu filme uma descrição minuciosa (e orgânica) da arte de Gladys. Assim, não interessa colocar a câmera a serviço unicamente do depoimento da personagem, como se ele em si pudesse revelar alguma coisa, mas buscar um modo de estabelecer um jogo e um conflito de Maria Gladys com sua própria imagem. “Do que seria feita essa imagem?”, é a pergunta do filme. Se a ambição da pergunta visasse só a mera relevante história e biografia poderíamos ter um regular documentário careta. Entretanto, a pergunta é direta e difícil porque constitui, principalmente, uma procura que não se vale só das informações possíveis, mas de uma busca estética. E essa busca é apreendida a partir das imagens que temos (filmes, fotos, imagens da atriz em casa), das mediações possíveis entre o trabalho e vida, se erigindo sobre o que a sensorialidade das imagens – em especial aquelas não óbvias ou ilustrativas, como a bela seqüência das danças – podem revelar. Porque, afinal de contas, estudar uma personagem (ou uma mulher de fato, porque aqui no caso não há – e nem interessa – uma separação clara) não é procurar só o que é dito ou demonstrado, mas o gesto, e o que não é possível ser dito.

Maria Gladys fala bastante, de si, de seus trabalhos, recita alguns poemas, mas muitas das cenas mais bonitas são as de silêncio, porque elas contêm alguma melancolia que em nenhum momento é verbalizada pela atriz. Vida é um filme triste, não porque faça dessa rememoração um atestado de decadência, como anda tão em voga no discurso da geração de artistas da qual Maria Gladys faz parte. Claro, existe a declaração da atriz de que tudo valeu a pena: o filme afirma a vida, mas a melancolia (leve e nada catastrófica) vem da constatação de que, a certa altura da vida, muitas coisas ficaram pelo caminho, muitos se foram. Mas ao invés de Gaitán e Gladys lamentarem, eles se aplicam a organizar isso tudo. É necessário organizar e dar sentido a toda essa memória e ver, hoje, o que se segue a partir disso. O que está em jogo é o modo como a diretora apreende esse turbilhão que é Maria Gladys, e como a atriz se relaciona com o tempo. Sua generosidade com a vida e com a arte (sem separação nem confusão), apesar de tudo, porque a vida e arte, nem sempre são generosas.

Outubro de 2008

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