Um porto de tempos sincrônicos

11/07/2014

por Aline Portugal[1]

O Rio de Janeiro vive um projeto acelerado de mudanças, que visa transformá-la em “Cidade Olímpica” até 2016. Entre as obras de grande porte, que tem atraído investimentos milionários, está a do Porto Maravilha – que, segundo a Prefeitura, é “o maior projeto de reforma urbana do Brasil”[2].

Nesse processo de reorganização espacial e simbólica, várias disputas emergem à superfície do tecido urbano. Novas partilhas do território são elaboradas diante desse reordenamento, e com elas, novos modos de subjetivação. Afetos, corpos e formas de vida buscam se afirmar e constituir território. Da mesma forma, as imagens produzidas sobre esse espaço são também um campo de disputa, na elaboração de formas de ver, dizer e sentir.

O Porto[3] concentra sua investigação na região portuária do Rio. É um filme turvo. Se a cidade vive um momento de intensa visibilidade midiática, O Porto traça outro percurso. Opta pela opacidade, a começar pelas imagens embaçadas. Há algo entre elas e o mundo que impede uma adesão direta: um aparato material à frente da lente que tira a sua nitidez, construindo um mistério que não se dissipa.

Nesse gesto, o filme guarda uma distância das coisas que filma. Parece estar em desacordo com o seu tempo, e opta por fazer dele uma investigação. Em uma superposição um tanto fantasmagórica, revolve passado e futuro buscando seus rastros no presente. Os diferentes tempos se tornam sincrônicos, coexistem em um mesmo espaço-tempo: a região portuária do Rio de Janeiro em 2013.

O passado das escavações. Da superposição de portos, que faz do Porto Maravilha uma espécie de deja-vu. O presente como um não-lugar, habitado apenas por uma boca escancarada, máquinas gigantes, luzes vermelhas e imensos transatlânticos. A medida aqui não é humana. Esta é reservada a um rendering macabro, em 3D, onde seres programados habitam jardins insípidos e um trem silencioso resolve os problemas de circulação da cidade.

A esta cena reserva-se um momento de maior transparência, tanto na imagem, nítida, como pela identificação de que projeto de cidade está em curso e sendo ali tensionado. O Porto opera um agenciamento: desloca a imagem publicitária da Prefeitura de seu lugar institucional e a aproxima da ficção científica. Gritos imprimem um tom de desespero.

O Porto carrega um mal-estar generalizado, que passeia por todas as temporalidades, numa espécie de eterno retorno. Mas o que volta não é o idêntico, é o princípio idêntico naquilo que difere. E o princípio aqui é o da tábula rasa, que soterra passado e presente em prol de um projeto de futuro:

No início do século XVIII foi construído na região o Cais do Valongo, para desembarque de escravos. Em meados do XIX, ele foi soterrado para a construção do Cais da Imperatriz, para a recepção da futura imperatriz que se casaria com D. Pedro II. Menos de um século depois, em 1910, o Cais da Imperatriz foi aterrado no contexto das reformas de Pereira Passos, com o material do arrasamento dos antigos morros do Senado e do Castelo, onde a cidade nasceu. Hoje é este porto que está obsoleto. Mas em breve vai se tornar Porto Maravilha!

Numa espécie de avesso do futurismo, o filme faz dessa exclamação um terror que se abate sobre a cidade, ligado a esse círculo do tempo. Ao revolver o que esteve soterrado – passado que emerge das escavações arqueológicas e futuro virtualizado no vídeo da Prefeitura – o que aparece, no filme, é o assombro. Um assombro que percorre as diversas camadas de terra e tempo.

Essa sensação é reforçada pelo desenho sonoro. A música dobra o incômodo buscado nas imagens, reforçando a atmosfera pós-apocalíptica – reiterada pela composição de ruídos de máquinas e um grave que perpassa o filme todo. Uma dimensão distópica.

No último plano, somos convidados a olhar de um barco que se afasta. Vemos a cidade cada vez menor. O desenho dos prédios distantes. Ouvimos o som do mar. Uma tranquilidade melancólica. É o único momento em que nos afastamos daquele espaço onde o filme imerge. Partimos. O Porto acaba, e fica a dúvida – que parece ser também uma possibilidade de escolha: se é “fugir, mas ao fugir procurar uma arma”[4], ou a impossibilidade de viver nesse espaço de replicantes que o filme anuncia como porvir instalado no presente.

 

 

 


[1] Aline Portugal é realizadora, roteirista, sócia da Mirada Filmes e mestranda em Estudos de Cinema e Audiovisual na Universidade Federal Fluminense.

[2] Trecho extraído do site http://www.cidadeolimpica.com.br/areas/infraestrutura/ Último acesso em 09/07/14.

[3] O Porto (21’, 2013), filme dirigido por Clarissa Campolina, Julia De Simone, Luiz Pretti e Ricardo Pretti. Produção: Mirada Filmes, Alumbramento, Teia e Toada.

[4] DELEUZE e PARNET, 2004, p. 164