Reflexões após a estreia de Com Os Punhos Cerrados no festival de Locarno
03/09/2014
Resolvi escrever após a experiência de passar em Locarno o filme Com Os Punhos Cerrados, que dirigi com Luiz e Pedrinho. Pra mim, é uma forma de digerir tudo o que aconteceu, mas também um jeito de exprimir ideias ainda incubadas, com a esperança de brotar alguma coisa.
Realizamos este filme com pessoas extraordinárias e profundamente responsáveis por toda a beleza e sentimento que o filme tem. São pessoas feitas de cinema, teatro, poesia, música, pintura, história e muito amor. Fazer um filme, pra gente, é dizer: “quero continuar lutando e amando”.
Resolvi escrever sobre esses dias que passei em Locarno mostrando o filme, porque é uma forma de aumentar a proximidade com quem já me sinto próximo. Mostrar um filme pra mim é dizer: “quero ir mais longe com vocês”.
Mas também resolvi escrever esse texto pra me aproximar de quem nos apoiou no financiamento coletivo, responsável pela viabilização econômica da finalização de nosso filme (30 mil reais), e que acabou nos proporcionando muitas outras alegrias: troca de e-mails, mensagens no facebook, e mais os desenhos da Clara Moreira e do Filipe Acácio.
Seguindo o fluxo, resolvi escrever para os nossos parceiros na pós-produção. Por isso escrevo para o Edson Secco, um artista muito sensível no trabalho com o som, e idem na vida, na política e inevitavelmente no cinema. E escrevo para o Victor Furtado, grande amigo e artista, que nos presenteou um dia e meio na Labocine para fazermos a cor com o Fabio Souza, em conjunto com o Guto e o Ivo.
E pra terminar, escrevo para as pessoas que trabalham nas instituições que foram, em parte, responsáveis pela nossa ida a Locarno: MRE, Dragão do Mar, ANCINE e Secult-CE. Essa é a minha maneira de prestar conta com vocês. A faço com toda sinceridade e vontade de trocar.
(Escrevo pra quem nem conheço e ainda assim me sinto próximo).
São muitas razões pra escrever, e no entanto escrever só me é possível num impulso, consequência de uma inconsequência. Escrevo porque sou livre.
No momento em que escrevo estou dentro de um trem escutando “Olha o Menino”, do Caetano Veloso. Proponho pra quem estiver lendo parar um momento e escutar uma música preferida do Caetano. Se permitir uma digressão é sempre bonito, é uma forma de romper com a objetividade. Estou olhando para uma imigrante africana e seus quatro filhos que finalmente dormiram (uns minutos atrás ela enfiou a mão na cara da filha mais nova que chorava-gritava). Logo à frente, uns chineses estão se acalmando, falando um pouco menos e terminando de comer, enquanto isso observo ao lado um casal de jovens italianos que leem livros grossos (storia tradizione e inmagine: san sebastiano al vesuvio). Eles se parecem um pouco comigo e a Julia, que está ao meu lado preparando o seu novo projeto de filme. Ela ajeita fotos de imperadores e imperatrizes portugueses que foram recentemente exumados em São Paulo.
Por uma razão não muito clara, essa digressão me faz ter certeza que o cinema é uma experiência coletiva, queira ou não queira. Penso que mesmo uma suposta primeira ideia de um filme, aquela que vem de repente, aparentemente quase sem esforço, é fruto de uma coletividade.
Mas, ao mesmo tempo, o que torna o cinema especial é que sua coletividade não tem bandeira, não forma uma pátria, nem determina fronteiras. Mostrar o filme numa sala escura, gesto final de um intenso processo coletivo, não se realiza na demarcação de territórios e línguas, mas no universo livre das formas e das ideias. Mostrar um filme é fruto de um desejo coletivo concluído em um espaço de múltiplas dimensões: o cinema.
O cinema é livre e sempre será (depois de algum chão percorrido, vejo que o que mais advogamos com ardor esses anos não foi apenas a coletividade, mas a liberdade: o cinema coletivo).
O que define o cinema? Sei que ele nunca será uma instituição, antes de tudo, será uma força da imaginação. Sei que ele nunca será uma indústria, pois o cinema sobreviverá pra muito além dela, mesmo tendo nascido dela. Não existe política pública, terrivelmente necessária, que irá diluir o livre fluir das ideias humanas e singulares, das relações terrestres e extraterrestres. Não existe especulação financeira, terrivelmente atroz, capaz de dissipar a força do cinema, a sua poesia. Já fizeram de tudo e continuam fazendo, mas de nada adiantou. A publicidade acha que venceu, os distribuidores e exibidores acham que a publicidade venceu, mas quando eu assisto Zéro de Conduite, do Jean Vigo, numa telinha de avião num voo pra Paris, ou quando eu assisto Amantes Crucificados, do Mizoguchi, num cinema de rua, eu sei que eles não venceram e nunca vencerão. A publicidade é burra e vaidosa, só entende o que é novo, mas não percebe que esse novo é vazio.
Um jornalista português taxou o nosso filme de démodé, entendi que para ele o cinema e a política se tornaram propriedade da moda, ditadura do novo. Esse mesmo português disse que João César Monteiro foi responsável pelo divórcio do público português com o cinema português. Nos disse, com bastante certeza, que na época do lançamento do filme Branca de Neve, o jornal nacional da tv portuguesa transmitiu o “escândalo” da estreia de um filme todo em tela preta realizado com financiamento público. Repito o gesto de João César à tv e digo a esse português: “Que se foda o público!” E acrescento: “O cinema é um processo e desejo coletivo, não é propriedade de ninguém, queira ou não queira. Não existe divórcio e não existe a entidade “público”, isso seria um absurdo. Mas o filme continua aí e continuará sendo visto e amado”.
Mas voltando à exibição do nosso filme. Estamos constantemente procurando com quem dialogar, com quem compartilhar sonhos. Essa procura já nos levou a muitos lugares e já nos colocou em muitas situações. Dessa vez foi a Suíça que encontramos. Um dia antes da estreia, fomos passear no lago Maggiore e demos de cara com um pessoal punk e seus cachorros. Pensamos em convidá-los pro filme, mas lembramos que o ingresso custava 12 francos suíços e que provavelmente eles não teriam condições financeiras. O cinema, de forma geral, se tornou um evento pra elite, realizado por profissionais. Isso me entristece muito.
Ainda não sei quem são as pessoas que vão conseguir se relacionar intensamente com o filme. Os mais jovens e os mais velhos são sempre a nossa aposta. Nossos filmes não funcionam muito com adultos, a não ser que eles sejam jovens ou velhos. Mas isso é muito vago. A gente fez esse filme pra nos despertar pra reflexão, pra nos mantermos atentos e fortes. A minha geração sabe muito bem fazer filmes pessoais e isso é muito importante e bonito (e em certa medida uma baita quebra de tabu), mas hoje acredito que também é importante terminar um filme pensando diferente de quando se começou a fazê-lo. Preciso fazer filmes que transforme o meu sentimento/entendimento pessoal diante do mundo, ao invés de apenas confirmar o que já sou (sabendo que uma coisa não nega a outra, pelo contrário, é uma soma: o pessoal + a pesquisa = matéria prima). Fazer filmes sobre o que já (supostamente) sabemos, e ponto final, é colaborar com os controladores da boa cidadania, é escravizar o pensamento. Um filme deve ser um espanto também. Pra mim é muito importante fazer filmes sobre o que não sei, fazer filmes sobre coisas que as pessoas não sabem. Um filme precisa ter uma região escura.
Ou então, gostaria de fazer filmes paradoxais, mas isso é muito difícil. De alguma forma tentamos inserir um paradoxo em Com Os Punhos Cerrados começando o filme com o final, e terminando com dois finais alternativos: eles morrem e eles vivem ao mesmo tempo – e ainda tem o bebê. O paradoxo pra mim é fascinante, mas quase nunca é apreciado, ou sequer percebido (só agora percebo que esse duplo final pode ter vindo do Liberty Valance, do Ford, ao meu ver, um dos filmes mais contraditórios do diretor que melhor fazia filmes contraditórios).
Locarno é conhecido por advogar filmes de autor, ou seja, filmes que quebram as barreiras das convenções correntes no cinema comercial. Nós participamos de uma sessão chamada Signs of Life que, pelo o que eu entendi, é o lado B dos filmes de autor, filmes que impõem ainda mais dificuldades de se adequarem ao cinema comercial.
Além de Com Os Punhos Cerrados, vi mais dois filmes dessa sessão: Fort Buchanan, de Benjamin Crotty, e Los Ausentes, de Nicolás Pereda. E por esses dois exemplos posso dizer que o lado B também está caminhando por um terreno minado por um novo conceito de mercado.
Existe um risco muito grande que esses filmes correm: se tornarem previsíveis na invenção de linguagem que propõem, começarem a cumprir uma cartilha do cinema independente, serem caretas no próprio terreno da subversão, domesticarem a liberdade que os filmes pequenos costumam ter. Em suma, esses filmes correm o risco de nascerem enquadrados, de serem obras pré-fabricadas, quando deveriam ser justamente o oposto.
Pelos filmes, dá pra perceber que a tentação de se enquadrar é grande, mas ainda são filmes que titubeiam. Às vezes são autênticos e outras vezes parecem conscientes demais de seu lugar no mundo. Às vezes são sensuais, às vezes são blasés. São filmes inteligentes demais pro seu próprio bem, mas burros o suficiente pra se permitirem ingenuidades que trazem um charme ou uma pulsão.
Hoje os festivais de cinema estimulam e apoiam toda uma produção de filmes mais arriscados feitos por diretores mais jovens. Os festivais não se contentam mais em apenas exibir os filmes, então eles criam laboratórios de roteiro, de crítica e de realização, articulam com o mercado distribuidor o visionamento de work in progress, forjam micro-mercados para o desenvolvimento de co-produções etc. Os festivais, como todo o resto, precisam se reinventar pra sobreviver. De alguma forma eles também precisam crescer e sofrem os mesmos riscos.
É na legitimação desse lugar que os diretores devem ficar mais atentos e fugir, a todo custo, da tentativa de domesticação de seu cinema, que qualquer instituição exige. No final do dia, são esses os maiores riscos que os filmes correm: o de serem domesticados por um novo mercado que dignifique os filmes de autor. Não é à toa que os jovens são os que mais correm esse risco, os mais suscetíveis, os mais colonizáveis.
Mas ao mesmo tempo a internacionalização da produção de cinema pode ser extremamente positiva. Eu aprendi muito trabalhando em filmes de outros estados do Brasil, e isso pode servir do mesmo jeito pra outros países. Pra mim não tem porquê existir crise de identidade ao filmar em outra cidade ou país, é mais uma forma de se colocar no desconhecido, pode ser motivo pra uma grande aventura, basta se permitir e deixar o mundo te invadir e ao mesmo tempo invadi-lo (o filme do Gustavo Beck, Inverno de Zeljka, é um ótimo exemplo pra mim). Talvez o exemplo recente mais forte que temos de cineastas que filmam em diferentes países são o Straub e a Huillet (exilados da França por muitos anos, já filmaram até no Egito). Mas tem também o Guerín e o Kiarostami. Indo mais longe, o cinema já tem até o seu próprio Gauguin: Murnau. Existem muitos exemplos que comprovam a força desse gesto.
Ao meu ver o cinema profissional e industrial é muito mais responsável pela padronização global do cinema, pela perda de um charme local, pela ausência de mundo nos filmes. Vejo por todo lado essas produções sem personalidade. Filmes feito por bons alunos, onde o importante é tirar uma nota boa, e não (des)aprender realmente alguma coisa.
Mas no final das contas, Com Os Punhos Cerrados é um filme absolutamente local. É um filme que só poderia ser feito em Fortaleza. Cada frame do filme está totalmente mergulhado na arte e nos artistas de Fortaleza. Tenho a firme convicção que o filme é único e irreproduzível. Por isso não acredito em crise ou busca de uma identidade nacional. No nosso filme usamos textos e músicas de muitos lugares e épocas diferentes. Do nosso humilde jeito tentamos formular um paideuma, e fazer uma defesa da poética sincrônica! Seguimos a tradição compromissada e rebelde dos irmãos Campos.
Ricardo Pretti