A BELA NOITE DAS TEMPESTADES, E O DIA SEGUINTE

23/11/2014

Luís Alberto Rocha Melo

Um bicho resolveu caminhar bem em cima da folha em branco, justamente no momento em que eu iria começar a escrever. Minto, não é uma folha: é uma tela de computador. A tela imita uma folha. Já me relaciono com ela como se fosse uma folha. Nem penso: admito, aceito: uma folha.

Não sei por quê, mas essa me pareceu a melhor forma de começar a dizer algo sobre três filmes que falam sobre a nudez. E também sobre a mudez. Três filmes que forçam o mudo a gritar sua própria nudez.

O bicho caminhando na nudez de uma folha/de uma tela em branco também está mais próximo do lixo que da eternidade. Não só ele, mas todos nós, fyguras saindo de cavernas ou de lixos extraordinários. Nossas caras lavadas/telas mal-iluminadas parecem computadores defasados a cada minuto. Check out. Sem rosto não se pode viajar.

Três filmes sobre encontros ou desencontros. Toda nudez será proclamada.

Primeiro espanto: um tom esverdeado sobre Helena Ignez interpretando Tadeusz Kantor com o livro verde-perspectiva na mão. Mas havia mesmo algum verde na tela? Digo, havia verde no plano em que ela está diante dos atores, ou próxima a uma árvore, apontando para a câmera/para nós espectadores, escandindo “eterno errante”? A cor esverdeada da morte (do Teatro da Morte) talvez ali nem exista mesmo, ou só exista como improvável resultado do vermelho sobre o negro, ou ainda de um Despertar de Mojica surgindo de uma risada Carne e Osso. Erramos, eternos errantes.

Segundo espanto: o Universo Negro. A nudez é Lá. Plácida, terrorífica, com suas estrelas de vidro que pairam amarelas sobre os postes de concreto e metal. Entre nós e o Infinito negro, até onde a objetiva alcança, o oceano e seus beijos. O máximo que fazemos é esticarmo-nos por um caminho de pedra até pensarmos que já é hora de voltar. Os corpos nus se lançam; a Arte se separa de nós. Podemos até voltar, mas o que é nosso (nossa infância ou velhice) já é parte desse Escuro que nos envolve, nos dissolve e nos devolve a pele e a roupa e a língua. Somos frutos diários de nossos próprios assassinatos.

Terceiro espanto: por que Ythallo fugiu? Por que virou a esquina e fugiu do tumulto? Se foi exatamente ali, na balbúrdia dos carros, dos ônibus, dos pedestres e alto-falantes, que ele conseguiu descobrir seu personagem? É que Lampião é outro filme-nu. Não porque mostre o ator-performático-errante-descarado sem roupa, mas porque o Encontro detonou o Terremoto. Lampião subtraiu o som direto de Lampião. Ythallo vingou-se: tirou o Michael Jackson de Raul Seixas. A voz do Autor é a voz de um ser sem corpo que é ideia e avança, recua e dobra a esquina; o corpo do Personagem é o corpo de um ser sem música, que dança e avança, desnuda seu Autor e o força a voltar e a encarar o absurdo que cega.

Os fantásticos planos de Raul Lampião que dança Michael Jackson by Flora Dias lembram Albert Camus: “A luz refletiu-se no aço e era como uma longa lâmina faiscante que me atingisse a testa. No mesmo momento, o suor amontoado nas sobrancelhas correu-me de súbito pelas pálpebras abaixo e cobriu-as com um véu morno e espesso. Os meus olhos ficaram cegos, por detrás desta cortina de lágrimas e de sal. Sentia apenas as pancadas do sol na testa e, indistintamente, a espada de fogo brotou da navalha, sempre diante de mim. Esta espada a arder corroía-me as pestanas e penetrava-me nos olhos doridos. Foi então que tudo vacilou. O mar enviou-me um sopro espesso e fervente. Pareceu-me que o céu se abria em toda a sua extensão, deixando tombar uma chuva de fogo. Todo o meu ser se retesou e crispei a mão que segurava o revólver. O gatilho cedeu, toquei na superfície lisa da coronha e foi aí, com um barulho ao mesmo tempo seco e ensurdecedor, que tudo principiou. Sacudi o suor e o sol.” (O estrangeiro).

Lampião é um dos filmes mais explícitos sobre o quão belamente perigoso e  intraduzível pode ser o encontro entre um documentarista e um personagem. Ao mesmo tempo, com um humor autoirônico que – ao menos para mim – é gritante, desfaz o mito da proximidade: vejo e ouço tudo, mas é minha e sempre aquela a voz que está dentro de minha própria cabeça. O resto é teleobjetiva.

A anti-performance, provisoriamente, pode ser entendido como o contraplano necessário à frontalidade de Ossos e Lampião. Não vemos o rosto do artista plástico-performático Jayme Fygura, mas a aeromoça vê. E ao vê-lo pergunta, rindo depois para a câmera: “Você tem uma beleza tão grande, por que você se esconde?”

A anti-performance é quase um filme pornográfico, ou certamente um dos mais sutis. Mostrar ou não o rosto ganha uma conotação francamente erótica, daí Fygura (que há 40 anos esconde o rosto) parecer fazer tanto sucesso com as moças e irritar de forma tão decisiva o Comandante do avião que faz o voo Salvador-São Paulo. Suprema ironia: é obsceno o corpo coberto por completo por uma roupa que não nos deixa ver sequer uma nesga de pele! Ou, como diz o Comandante, não mostrar o rosto constrange os passageiros. Em contraponto à Fygura, temos as caricaturas: os passageiros do avião, os pedestres, os passantes, nós espectadores, todos devidamente semi-vestidos.

Somos enfim modernos-narrativos, decupados em pescoço e colo, mãos e rosto, canelas e orelhas. Nada de corpos totalmente nus, nada de corpos inteiramente vestidos. A regra é o normal e o normal é o padrão e isso aqui – o avião, ou a vida – é apenas um meio de transporte.

Felizmente, Ossos, Lampião e A anti-performance nos transportam para bem longe de um cinema normal tipo aquele feito à base de sussurros.

Felizmente eles gritam, e gritam bem, gritam muito alto.

 

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Veja os filmes: