Memórias Após o Fim – ou Simplesmente Alumbramento…

OU SIMPLESMENTE ALUMBRAMENTO…
memórias após o fim

******
Nota prévia: esse relato é pessoal, portanto, longe de ser definitivo sobre qualquer tema aqui abordado.

**
Alumbramento iniciou sua existência, em setembro de 2006, quando Ivo Lopes sentiu necessidade de adquirir um cnpj, porém naquele momento praticamente não havia editais, e mesmo que houvessem, a maioria de nós não teria projetos e roteiros para inscrever nos editais. Porém, ideias para filmes, exposições e outras loucuras não faltavam, e o desejo de realizá-las tampouco.

Sábado à Noite, de Ivo Lopes, poderia ser (e em certas medidas é) considerado o primeiro filme da Alumbramento, se ele não fosse do Alpendre Casa de Arte. Eu acho essa conexão-confusão maravilhosa, pois não dá para conceber o Alumbramento sem o Alpendre (coletivo de artistas e pensadores de uma geração anterior à da Alumbramento). Todos nós que fundamos o coletivo Alumbramento estávamos envolvidos (trabalhando e frequentando) com o Alpendre (principalmente via a figura mestre de Alexandre Veras). O primeiro trabalho que me propuseram, ao chegar em Fortaleza, foi no Alpendre, a convite de Veras. O primeiro filme que exibi em Fortaleza, quando ainda nem morava lá, foi no Alpendre, entre vários outros acontecimentos. Toda uma ideia de coletivo e de fusão de linguagens artísticas já estava formulada quando iniciamos os trabalhos na Alumbramento. Eu e Luiz, que vínhamos do Rio, já tínhamos tido uma experiência bastante imatura de coletivo chamada Grupo Desvio, que também tinha a intenção de fazer coexistir diferentes linguagens artísticas. E, uns anos depois, quando entraram Guto Parente e a seguir Pedro Diógenes, eles também já vinham de uma experiência coletiva chamada Artéria Experimental. Enquanto a Thais de Campos vinha de um brechó que era gerido coletivamente, Mariana Smith já tinha trabalhado com o coletivo de Recife, Telephone Colorido. E a Gláucia Soares, junto com Veras e Beatriz Furtado (também do Alpendre) estavam concebendo, produzindo e inaugurando um dos grandes momentos coletivos da cidade: a escola de audiovisual de Fortaleza, incluída no projeto da Vila das Artes da prefeitura de Fortaleza. Alumbramento me parece a soma e continuação disso tudo, e aí reside boa parte da sua força.

No entanto, o primeiro filme da Alumbramento (feito sem necessidade alguma de um cnpj) se chama às vezes é mais importante lavar a pia do que a louça, ou simplesmente, Sabiaguaba, concebido e realizado por Luiz Pretti e eu. Esse curta-metragem foi filmado em um dia e montado ao longo de três meses. Ele foi feito com uma câmera e um computador do Ivo, mais um microfone do Danilo Carvalho. Essa simples fórmula, de filmar rápido e montar devagar, se tornaria praticamente um padrão de produção dos filmes Alumbramento. Sabiaguaba estreou em Oberhausen, festival alemão de curtas experimentais. Esse reconhecimento nos deu alguma força para continuarmos fazendo filmes. Naquele momento não existia referência próxima que nos guiasse por esse mundo de exibições em festivais. Aprendemos tudo sozinho e, no entanto, tudo errado. Para se ter uma ideia, o filme foi mandado para seleção num dvd sem capa, apenas envolvido numa folha de papel A4 com o nome do filme impresso (e isso graças ao nosso amigo Ticiano Monteiro – que era amigo do Marcellvs e por isso conhecia o nome do festival). A exibição, desastrosa, foi numa cópia dvcam. Era a época do hdv, e não conseguimos tirar o flicker dos movimentos de câmera. Hoje, a “matriz” do filme é de uma resolução bem baixa, e é a cópia de uma cópia. E assim começou-se a fazer filmes.

Nos anos seguintes expandimos a noção de fazer filmes para outros meandros. Algo que já vinha sendo feito pelo Alpendre também. Arranjamos exibições públicas para Sábado à Noite e Praia do Futuro – filme em 15 episódios realizado por 18 pessoas. Foram verdadeiras intervenções na cidade, lideradas na produção por Ivo Lopes e Rúbia Mércia. Sessões gratuitas no cinema de rua São Luiz (para 1500 pessoas), seguidas por shows e festas. E ao longo das semanas anteriores fizemos todo tipo de ação para divulgar a sessão. Até bicicleta com som divulgando a sessão no centro e estêncil nas ruas rolaram, além dos meios mais convencionais como TV e rádio que nos eram de fácil acesso. Os filmes obviamente foram muito mal compreendidos e, portanto, rejeitados. Mas esse movimento de sair da nossa bolha foi muito esclarecedor (tanto para fortalecer quanto pra transformar nossas convicções). No caso de Praia do Futuro, a maioria dos espectadores mais desavisados acharam que era um filme feito por gente de fora de Fortaleza e também se queixaram desse tipo de filme ser feito com dinheiro público (erraram nas duas acusações). No caso de Sábado à Noite houve queixas da classe intelectual e acadêmica, além de suspeitas de como o dinheiro foi usado para um documentário tão simples e experimental. Estávamos fora de tudo, mas também estávamos dentro, e as sessões lotadas eram prova disso. Ninguém via sentido no que estávamos fazendo, mas ninguém estava dando prioridade para as coisas fazerem sentido. Naquela época a bagunça era boa e grande. 

***

Ao mesmo tempo, os nossos filmes estavam muito próximos do dia a dia, da rotina de cada um. Não tinha tanta diferença entre regar as plantas e pegar uma câmera. Cada um tinha uma razão própria para fazer filmes/obras imbricadas na rotina. Para mim era principalmente a ideia de ser um respirador, ao invés de artista, propagada pelo Duchamp. Nessa época, o gesto mais radical nesse sentido foi o projeto de Ivo e Thaís chamado Livro Livre. 100 livros foram lançados por nós em ruas de todos os bairros de fortaleza. A ideia era deixá-los aleatoriamente pela cidade, para ver se alguém seguia as instruções. Na primeira página pedia-se para escrever ou desenhar algo no próprio livro e passa-lo adiante, até chegar o dia da abertura da exposição (100 dias depois que lançamos os livros). Para entender a beleza e complexidade do projeto é preciso acessar o nosso site: https://alumbramento.com.br/livro-livre/

Em paralelo aos livros, cada um de nós filmamos 1 minuto por dia durante 100 dias, dando 100 minutos, e como éramos dez, isso daria 1000 minutos de imagens do nosso cotidiano, exibidas na exposição, numa instalação com 10 TVs e uma projeção do filme de 100 minutos da entrega dos livros. 

Igualmente importante nesse sentido foi fazer Rumo e A Amiga Americana. Rumo começou quando, em 2008, Luiz ganhou de presente o primeiro celular que gravava vídeos. A qualidade, se não me engano, não chegava a 200 x 100 linhas, uma resolução que nunca existiu em canto algum. No começo era só uma curiosidade, mas aos poucos, após alguns exercícios que ele fez, nós fomos nos interessando mais intensamente. A qualidade baixíssima foi revelando para a gente a sua beleza e mostrando o seu valor pictórico e conceitual. De um lado vimos uma imagem análoga a experiências impressionistas e pontilhistas, e do outro, encontramos uma imagem que se adequava perfeitamente ao conceito de inframagro do Duchamp. Paralelamente, tanto eu quanto Luiz, queríamos filmar com Uirá dos Reis e Thais Dahas. Os dois, cada um à sua maneira, tinham feito filmes-retratos íntimos que nos interessou muito (algo entre Warhol e Deren da era cybercam) e nós queríamos continuar explorando isso com eles. Não tínhamos um projeto claro, mas eles toparam. E tudo começou quando um dia ligou Uirá dizendo que ia cheirar cola, e como ele nunca mais cheirava seria uma boa oportunidade da gente filmar isso acontecendo, mas tinha que ser naquele dia. E assim se “oficializou” o início da filmagem, que se misturou com imagens que fizemos numa viagem com nossa família.

De um jeito parecido aconteceu A Amiga Americana. Estava sozinho por todo o fim de semana em casa, já não morava mais com o Ivo na Sabiaguaba, então aproveitei para ligar e ir visitá-lo. Nesse mesmo fim de semana estava por lá uma amiga americana de uma prima da Thais de Campos que queria conhecer o Nordeste. Achamos ela incrível e perguntamos se não queria fazer um filme com a gente. Fizemos um roteiro numa tarde e passamos os próximos 03 dias filmando com ela, mais a Thais e o bebê Ian. Depois foram mais três anos para conseguirmos terminar a montagem, bem aos poucos, no ritmo da vida hippie, o que acabou servindo para amadurecermos a nossa visão do filme. Nossa ideia era fazer filmes consistentes com o mínimo de recursos financeiros. Hoje, eu ainda adoro esse filme, e ao longo dos anos ele foi ganhando uma dimensão política maior. Como receber um estrangeiro e como ser estrangeiro? O filme lida com essas questões na contramão de uma crescente invasão turística e neoliberal pelo mundo. E o filme tem um incrível senso de humor.

Provavelmente, o ápice dessas experiências de aproximação entre vida e arte se deu com os filmes do Luiz: Azul ** (co-realizada por Themis Memória), O mundo é belo e Não estamos sonhando. Filmes de extrema economia, profundamente íntimos, mas com uma dimensão cósmica, política e amorosa que chega a dar um frio na barriga.

Muitos outros filmes foram feitos ainda nesse momento em que estávamos mais despreocupados, menos ávidos por ocupar um espaço social mais definido. Um deles que nunca me esquecerei é o Casa da Vovó, do Victor de Melo. É o tipo de filme onde cada imagem, para além dela em si, se torna o próprio nascimento da Imagem, sua concepção. Esse filme me fez entender que havia uma intuição coletiva em jogo naquele momento. Não havia planejamento na feitura dos filmes. Era um cinema sem linguagem, selvagem e solto, expressão da intuição artística individual amparada por uma sensação de comunidade – devido principalmente à escola de audiovisual da Vila das Artes, que na mesma época nos deu um filme igualmente poderoso e intuitivo chamado Espuma e Osso, de Ticiano Monteiro e Guto Parente, com fotografia do Victor de Melo (e aquela sensação do nascimento da Imagem se encontra aqui também). O personagem desse filme (um homem com cabeça de mickey mouse) foi retomado em outro filme, chamado Longa vida ao cinema cearense, que, junto com Meu Amigo Mineiro ** de Victor Furtado e Gabriel Martins são os únicos exemplos de influência direta de um filme em outro – teria sido bom isso ter acontecido mais vezes. Nessa mesma época, Guto fez Flash Happy Society, prova indiscutível de que a simplicidade e a invenção, amparadas pela intuição, andam muito bem juntas (a expressão “tirar leite de pedra” faz todo sentido aqui).

Todos esses filmes são únicos e que expressam visões e individualidades bem específicas. Não dá para imaginar esses filmes sendo feito em qualquer outro contexto e época, pois eles são a soma do nascimento do indivíduo criador impulsionado por uma intuição coletiva forte, larga e solta (que não é exatamente a mesma coisa que zeitgeist, talvez seja inclusive o contrário). É sempre difícil de evidenciar isso no cinema, arte por demais voltada à noção exclusiva de autor.

***

Acredito eu – por causa do que vivi, mas também por causa de uma leitura de Élie Faure – que a intuição artística precisa se transformar em um tipo de conhecimento mais preciso e talhado, precisa depender menos das circunstâncias, para que ela continue existindo. Ou seja, não se pode intuir a mesma coisa sempre. E em algum momento acaba se tornando necessário um compromisso menos espontâneo com a arte. Nós, em diferentes graus e medidas, passamos por isso, por uma espécie de perda da inocência. Essa transição não foi fácil, acentuou as contradições e fragilidades do nosso modo de produzir e exibir filmes. Fez a gente hesitar em relação aos próximos passos. Nessa época, os filmes ficaram bem irregulares, alguns se perderam ou nem foram exibidos. Dessa época, vale ressaltar duas obras mais maduras, consistentes e que perduram até hoje: As Corujas de Fred Benevides e Supermemórias de Danilo Carvalho. Dois filmes nascidos de uma relação mais conscientemente histórica com o Ceará (pela literatura e pelos filmes de família em super-8).

Não é fácil perceber que perdeu-se a intuição, mas é ainda menos fácil recuperá-la. Foi precisamente nesse momento que dentro da Alumbramento surgiu uma espécie de coletivo dentro do coletivo que foi o Pretti & Parente. Não fosse isso, provavelmente teríamos desaparecido aos pouquinhos sem ninguém notar. Ao invés disso, rolou Estrada para Ythaca, filme que foi responsável por uma renovação da nossa intuição, e, consequentemente, um passo mais ousado e original na nossa trajetória até então. E de repente foi necessário, às muitas custas, definir um pouquinho o papel social do nosso trabalho. Nesse mesmo momento surge Carol Louise para transformar toda a organização da nossa bodega. Carol vinha de uma experiência em gerenciamento de escola particular e laboratório médico e estava querendo mudar de vida. Nessa época estávamos imersos no caos dos filmes irrealizados e começando a se afundar em dívidas. Escolhas mais radicais foram tomadas e houve uma repaginação do modo de operar bastante profunda. 

Acredito que existem poucos encontros explosivos numa vida. O Pretti & Parente foi um deles, para mim. Em 2 anos realizamos três filmes (Estrada para Ythaca, Os Monstros e No Lugar Errado), enquanto os outros dois (Com Os Punhos Cerrados e O Último Trago), foram filmados alguns anos depois, mas também concebidos nesses primeiros dois anos. Essa intensidade prolífera aconteceu a partir de uma necessidade de superar certas paralisações, que corríamos o risco sério de ceder enquanto realizadores. A nossa solução foi, em conjunto, encontrar uma forma de expressar e imprimir a nossa visão de mundo, através dos filmes, que fosse a mais cristalina, a mais honesta possível. Ao meu ver, os dois primeiros filmes são exatamente isso. São filmes com uma postura aberta e transparente, de combate às convenções formais e processuais correntes no cinema, de resistir ao que visa padronizar a nossa forma de olhar, sentir e pensar. Com esses filmes conseguimos ir contra tudo que nos ditava como pensar. E para isso acontecer era importante mostrar, da maneira mais honesta e justa, o que e como cada um de nós pensava. Assumir a nossa visão de mundo, no sentido mais amplo, ou seja, inventar um mundo diferente para se viver. Acredito que inventamos esse mundo diferente, um mundo que abarcasse as nossas diferentes subjetividades acolhidas por um senso de coletividade. E o inventamos com filmes amadores, na contracorrente do mercado audiovisual, sem proteções oferecidas por profissionais e por dinheiro, sem planejamento de carreira autoral, etc. E com esses filmes abrimos um caminho para outros filmes, de outros lugares, distantes, porém próximos da gente. Para mim, é como se a intuição coletiva tinha não só sido renovada, mas expandida. Atingimos mais pessoas e isso reverbera até hoje.

Porém, mais uma vez a dificuldade em renovar a intuição criativa se impôs em nosso trabalho. Ir na contracorrente significa que você vai ser confrontado com esse problema da intuição mais e mais vezes. No Lugar Errado é um filme extremamente hesitante, o nosso filme mais difícil de definir, de encontrar a força da sua rebelião, pois é um filme caótico, mas também o que foi mais longe em questionar várias convenções do cinema. É o nosso filme mais anti-cinema e mais anti-autor. É um filme mais auto-destrutivo, como se fosse necessário um suicídio coletivo para se manter livre de tudo, até de si mesmo. É um filme de desencontros muito intensos, o filme menos programado de todos os nossos filmes não programados. Um susto, uma terapia de choque. Um corpo estranho, alienígena.

Foi preciso dar um passo atrás. Voltar para o nosso universo, terminar de construir aquilo que tínhamos começado uns anos antes. Com os punhos cerrados é um filme mais escrito, não só em forma de roteiro, mas num uso mais consciente da linguagem do cinema, da escrita e da retórica fílmica. Sem a intuição aflorada, foi preciso encarar a criação de um jeito mais frio, de mostrar um domínio, necessário para continuar o trabalho. Dentro desse domínio foi necessário um modelo de equipe mais tradicional – mesmo que essa equipe fosse uma família. Entramos no campo de domínio da fotografia, da arte e das locações, dos figurinos, do elenco e da finalização de imagem e som. Pela primeira vez criamos dentro de um aparato maior. A coisa não degringolou porque juntou-se uma equipe de colaboradores. O Uirá, que fez parte do elenco, é o exemplo mais claro do que uma colaboração integral a um filme pode suscitar. 

Uma nova fase estava se abrindo. Filmes como Retrato de uma paisagem, Medo do escuro ** e ** Estranho caso de Ezekiel são resultados diretos dessa crença do cinema como uma arte colaborativa. Medo do escuro levou essa crença até o momento da exibição do filme, concebido para ser com música ao vivo, no desejo de manter o filme sempre novo, diferente e coletivo. Foi uma nova forma de des-hierarquizar o processo cinematográfico que encontramos, pois nem sempre iríamos conseguir fazer filmes menores onde a coletividade era mais radical, no sentido de transformar todos em diretores, equipe e elenco simultaneamente. Retrato de uma paisagem é um filme singular na arte da colaboração, propondo uma postura aberta e frontal da equipe com os habitantes do centro de Fortaleza. Ao meu ver, é um documentário fundamental, pois reintroduz no cinema a necessidade de se pensar politicamente através do corpo que se joga na cidade. Já em Ezekiel, a arte da colaboração se dá na própria gênese do projeto. A ficção está nas convenções fílmicas, mas em espírito o filme poderia ser um diário filmado entre amigos. 

A Operação Sonia Silk também se enquadra nesse desejo de criar uma trupe colaborativa, de aproximar o cinema dos grupos de teatro e de circo. Mas, esses filmes, apenas em parte são filmes Alumbramento. Na minha visão são, acima de tudo, um projeto concebido pelo Bruno Safadi (um dos cineastas mais prolíficos e inventivos do Brasil) e corajosamente executado e produzido pela Daza, na figura de Rita Toledo, roteirista e produtora, que assumiu a liderança acompanhada pela atriz e produtora Leandra Leal. A Operação Sonia Silk aconteceu como um trovão forte (rápido, mas barulhento e inesquecível) e representa mais uma forma de continuar fazendo filmes baratos, de forma rápida e despretensiosa. 

O terceiro e último filme da Operação, chamado O fim de uma era (filme feito dentro dos outros filmes, com colaboração de Lucas Barbi na câmera), mostra um pouco essa ideia de trupe, ao mostrar uma equipe pequena e bastante relaxada – ao ponto de vermos todos dormindo no set. Foram filmes feitos com praticamente nenhum dinheiro. Por um lado, é péssimo receber tão pouco, mas por outro (se for filmagem rápida e pequena) quando se consegue reunir pessoas em torno de um projeto que não seja primeiramente mediado pelo dinheiro, isso torna imediatamente o clima mais colaborativo e menos hierárquico. Mas nem todo filme se encaixa nesse jeito mais espontâneo. E foi assim que chegamos ao O Último Trago**, nosso primeiro longa com dinheiro público, quase 1 milhão de reais.

Não sei muito bem o que falar ainda sobre essa experiência, pois ela é muito recente, ainda não é uma memória bem formada. Posso dizer que é o nosso filme mais complexo e misterioso. De alguma maneira O Último Trago representa o fim da Alumbramento. O fim de uma produção de filmes mais despreocupados. O fim daquela livre intuição, daquele tempo ocioso. Talvez todos nós passamos por coisas parecidas como o fim dos aluguéis baratos (dividindo com amigos), as responsabilidades da vida adulta, o fim dos longas feitos com dinheiro de curta, o fim das ficções com não-atores etc.

E isso não deve ser encarado com tristeza, mas com atenção. Mais uma vez devemos pensar onde se encontra a intuição criativa, aquela eterna rebelde, longe das estatísticas de público, do totalitarismo dos números e das cifras. Onde se encontra o cinema feito para pessoas (ao invés de público). Como continuar procurando o cinema que não é feito para os distribuidores, por demais próximos e tomados pela indústria americana, cujo lugar no mundo não é o mesmo que o da maioria dos realizadores brasileiros.

Alumbramento, à sua maneira, experimentou com inúmeras formas de criação coletiva ao longo desses dez anos. Praticamos formas coletivas que nem nós mesmos fomos capazes de vislumbrar antes de acontecer. Questionamos a soberania do Autor no cinema, diluímos a extrema vaidade individual contida nesse conceito (e tão apropriada pela publicidade) e construímos uma outra coisa por cima disso, coisas concretas como filmes, exposições, intervenções, cineclubes, lançamentos de filmes na internet (nossos e de amigos, quando ainda ninguém acreditava que isso teria alguma validade). Fizemos muita coisa com muito pouco. Não nos submetemos às amarras do capitalismo, mesmo que com ele tenhamos convivido. Não nos servimos aos interesses dos festivais internacionais, mesmo que lá tenhamos exibido filmes e não nos rendemos a um projeto de sucesso, pagando o preço em acreditar que o fracasso era a melhor forma de sucesso, dado o estado das coisas. Fizemos, do nosso jeito, o que acreditávamos ser o gesto mais honesto possível, a favor de um cinema que pensa por conta própria, que não se submete aos desígnios arbitrários do dinheiro e da tolice dos padrões do cinema (tamanho de equipe, qualidade de imagem e som, roteiros de labs etc. etc.). A maioria pode não concordar, ou sequer se interessar, com essa postura, mas nós a conseguimos manter em prática por um bom tempo, sempre encontrando novas maneiras de sobreviver. E o que vejo hoje, olhando para trás, são filmes únicos no verdadeiro sentido, pois são filmes que não se assemelham a nada, nem entre si. São filmes únicos porque toda vez que vou fazer um filme novo e quero mostrar algo que já fiz para alguém com quem vou trabalhar pela primeira vez me parece impossível escolher um exemplo que se assemelhe minimamente ao que vou fazer a seguir. São filmes únicos porque ninguém tinha feito nada parecido antes, e se tornaram ainda mais únicos quando outros viram esses filmes e se inspiraram por eles, se deixaram influenciar por eles.

Num nível mais pessoal, eu ganhei uma cidade nova e com ela todos os sabores e dissabores. Nasci no Rio de Janeiro e no entanto sou um cineasta cearense (mesmo que não more lá há 7 anos). Essa quebra de fronteiras, essa mistura do sudeste com o nordeste, ninguém será capaz de me tirar. O cinema serviu um propósito maior, destruiu barreiras culturais e econômicas. E é nesse sentido que me considero um cineasta livre e rebelde em pleno exercício.

 

Ricardo Pretti