Anotações – O Amor Nunca Acaba

30/06/2012

(pra quem já assistiu ao filme)

1.

A estrutura narrativa é uma ilusão. Plano após plano o filme vai se desintegrando de um jeito quase imperceptível, mas brutal. Ao final não sobra nada, apenas a crítica que o espectador pode fazer a partir do título do filme: sobre o insondável criar o insondável. A estrutura narrativa é abismal.

2.

Afinal de contas, quem é Débora? Ou será Amanda? A empregada já foi a namorada? Ou a mesma atriz faz dois personagens? Dificilmente… E as amigas? Quando elas resolvem que são prostitutas? No primeiro momento do filme o homem leva uma cantada de uma mulher morena (que lhe sussurra no ouvido). Ela volta pra sua mesa e ele olha pra ela fazendo uma gracinha, mas quando corta pra ela já é uma outra mulher, uma loura. E o barman parece estar confuso. Pra quem ele olha? Talvez ele olhe pra mulher que chega no fim da noite.

3.

Apesar de não ser dito no filme, o nome do personagem é Augusto Rocha (o sublime e o concreto): o que nos escapa e o que nos atinge, o invisível e o visível, o que é etéreo e o que é opaco. Este nome, desejo de personagem, já tinha surgido em dois filmes anteriores que permaneceram inacabados (um deles não chegou nem a ser montado). Um personagem sem psicologia, sem passado, mas também sem futuro. A Julia De Simone o chamou de vampiro, e realmente ele dorme de dia e acorda à noite, e parece estar eternamente entediado. O que torna esse personagem tão impenetrável?  Na varanda ele quer amor eterno, mas o filme diz que isso não vai acontecer, o sol está se pondo e a duração desse plano carrega a desilusão (o filme está contra o personagem). Ele acorda, vai pro quarto e senta onde a empregada, talvez namorada, sentou. Um abismo, mas também uma evidência de que alguma coisa aconteceu ali (porque ele dorme na sala e não no quarto?). Neil Young canta: “a man needs a maid” e “to live a love you have to give a love”. 

4.

Ainda em cima desse personagem eu fico me indagando, tentando entender a dimensão terrível de um homem radicalmente excluído. Como chegamos a isso nesse filme? Por que? A este homem não existe a possibilidade de uma família, e mais triste ainda, não existe a possibilidade de uma mulher, “aquela não impossível que ainda vem”. Uma maneira do homem excluído ser novamente integrado à sociedade é o amor por uma mulher e o sexo íntimo compartilhado num quarto, mas esse homem não tem quarto, ele é um sem-quarto.

5.

Na cena em que as duas amigas/prostitutas acordam realizamos uma decupagem extremamente simples e difícil. Os olhares das duas a princípio não se encontram, a aparição da segunda mulher inclusive é uma surpresa, uma exceção (criada pela expectativa do espectador). Mas a seguir, quando o homem se mantém imóvel (dormindo e morto), as duas se tornam o centro da cena, elas convergem, os olhares se encontram. E depois as duas se vestem e uma fecha o zíper da outra sem nenhuma pressa. Existe uma generosidade encontrada no gesto mais mínimo (que quase não se vê). É isso que eu chamo de humanismo, no sentido em que os gestos são conscientes, racionais, mas totalmente circunstanciais (bem distante do que chamam de direitos humanos). Essa cena não está no rol dos grandes temas (o dia seguinte a uma noitada, o momento em que se acorda), mas me parece uma bela oportunidade de fazer cinema. 

 

(ricardo pretti)