Email do Fábio Andrade sobre Meu Amigo Mineiro

05/02/2013

 

Vi o filme pela terceira vez, e os momentos memoráveis se impõe desde a primeira vista. Não dá pra esquecer da presença suleimaniana do Gabito; do karaokê-semi-piada-interna (aqui, dá certo, mas sugiro sempre cautela com o cerceamento do mundo); da cara que o Gabito faz na ponte do parque, quando o Vitinho vira menina; do último “plano”, que é uma solução inspiradíssima pra fechar aquela história e dizer tudo que precisa ser disso. Esses são os planos que ficam. 

Mas descobri que gosto mais do filme justamente pelos momentos que esqueço e que se renovam a cada vez que vejo. Não são poucos: 

– A montagem solar e silenciosa que vem com o piscar de olhos do Gabito, no começo do prólogo, e que traz ali dois dos planos mais bonitos do filme (aquele à beirada do riacho; e o da Coca Cola em garrafa de vidro); 

– A estátua do Leão filmada pelas costas anunciando o revés da cidade (tanto a cidade oficial, de cartão postal, quanto a cidade íntima, mapeada pelo amigo, e aqui perdida no desencontro);

– A subida da escada até a cobertura, filmada como sequência de filme de terror de tintas leves (escuto um drone ao fundo? fico com a impressão que sim, mas justamente a oscilação entre a dúvida e a impressão é o que gosto ali) e com um rigor de ritmo e de onde se coloca a câmera. 

– Os olhos enormes na camisa da grávida que olham de dentro pra fora e que, talvez acidentalmente, trazem um grifo bastante curioso praquela cena, com aquela música (mas o grifo do Hombre-Araña eu duvido que seja acidental); 

– Mas diria que, principal e mais expressivamente, gosto de dois momentos daquela montagem de fotografias que entra ali pelo meio do filme: o gato fora de foco e as duas fotos do muro que marcam a correção do diafragma. A atenção a este tipo de detalhe, e ao que eles afirmam e negam dentro do filme, me parece colocar Meu Amigo Mineiro num outro lugar, num outro estado de atenção – um pouco como o oferecimento da sombra ao guarda-sol me colocava em um outro estado de atenção em A Amiga Americana. Me encanto, sobretudo, com o cinema que é feito desses detalhes, em que a assimilação do erro deixa de ser um discurso acadêmico pra boi dormir e se torna uma afirmação de fato sobre “o que olhar” e “como olhar”. 

Acho significativo que esses sejam os momentos que eu esqueço – que estão no filme – e escrevo menos de 12 horas depois de tê-lo revisto pra não correr risco de esquecê-los novamente, embora eu fique com a sensação de que havia um quarto momento a ser listado, que a noite de sono já tirou da memória – porque eles carregam certo “mistério do dar a ver” que se renova seguidamente (se não se renovasse, não seria mistério).

E acho que há certa beleza em vocês falarem em Eugene Green e Na Cidade de Sylvia no debate, e eu enxergar isso no filme… mas enxergar também Suleiman e Hong Sang-soo (porque Green e Guerin jamais colocariam as fotos com correção de diafragma ali no meio, ainda mais sendo fotos de um muro), me lembrar que o Jia Zhang-ke também filmou o avesso de uma estátua de um leão com um sentido muito parecido (mas em um filme – Memórias de Xangai – que não poderia ser mais diferente) e pensar que, diante de tantos curtas que tentam dar saltos bem maiores do que as pernas permitem, talvez eu tivesse me esquecido de o quanto pode ser estimulante acompanhar os pequenos passos de uma formiga.

 

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