FILMAR O FILME

03/06/2013

Por Carlos Alberto Mattos

A primeira cena é um lance de dados. Anna Karinne Balallai, que até então não sabemos ser a escritora em transição Carola Brecker, tira uma mensagem da sorte pelo bico de um papagaio no centro de São Paulo. A cena seguinte, pelo contrário, é uma afirmação muito sólida e decidida da mesma personagem. Ao telefone num quarto de hotel, ela manda às favas o companheiro, um tal de Mickey. Garante que não vai mais voltar ao Rio, quer que ele desocupe o apartamento em três dias e deixe as chihuahuas em boas mãos. Carola pode não saber o que vai acontecer em seguida, mas sabe muito bem o que quer que aconteça.

 

Não é muito diferente a atitude geral de Nenhuma Fórmula para a Contemporânea Visão do Mundo, primeira (esperamos) aventura de Carola Brecker no país da solteirice e da criação artística. Assim como Godard fez sua mulher Anna Karina dançar, cantar e viver a vida em sucessivos filmes, o campo está aberto para Luís Rocha Melo fazer o mesmo com a sua Anna Karinne. Não sem um sentido simbólico, pouco depois de selar sua separação Carola vai comemorar gastronomicamente no bairro da Liberdade. Ao mesmo tempo, ela tem um projeto em São Paulo: escrever 42 peças para um diretor polonês excêntrico (mas qual diretor teatral polonês não o é?).

 

Ou seja, Carola e seu filme querem ser livres e ao mesmo tempo realizar um projeto amalucadamente ambicioso. Nem ela nem o filme sabem o que vai ser da próxima cena, mas há ali uma tal disposição de construir alguma coisa que o filme se torna muito rapidamente uma comédia irresistível. Sem preocupações com regras de continuidade, cânones narrativos ou economia dramatúrgica. Nenhuma fórmula, mas ainda assim uma visão contemporânea do mundo pulsa como quem não quer nada nessa pequena fábula da produção cultural em tempos de mediadores, ilusões de independência e referências globalizadas.

 

O filme se comunica através de três fluxos paralelos. Um deles é o da intimidade. Para quem conhece Luís Rocha Melo e suas afinidades eletivas é saboroso decodificar as presenças de Remier Lion (as himself), Alessandro Gamo (com quem Luís já realizou o documentário O Galante Rei da Boca e aqui encarna o impagável “gangster cultural” Al Gazzarra) e Roman Stulbach, o saudoso diretor, produtor e montador de origem polonesa que arrasa no papel de Tadeusz Karkowski, o encenador ninfomaníaco capaz de propor um jogo de sedução bilingue em torno de uma salsicha quase polonesa. Outro fluxo é o das citações cinematográficas, com a visita à Ocupação Sganzerla, a trilha sonora recheada de referências ao filme noir, aos faunos debussyanos e às valsas polonesas, e ainda com as divagações musicais que lembram os momentos mais românticos de Godard.

 

Mas, independente dessa rede de relações públicas e privadas, o filme se sustenta por si como paródia de um processo pessoal e cultural muito claramente desenvolvido na tela. Isso é o que faz Nenhuma Fórmula… transpor os limites do “filme de garagem” (para usar a terminologia de Marcelo Ikeda e Dellani Lima) e abrir-se para uma fruição mais ampla e compensadora do que a média.

 

O trunfo desse segundo longa de Luís Rocha Melo talvez seja o de assumir a liberdade e o encanto do “faz-de-conta”. Isso é feito quase programaticamente através de elementos como a música “Assim eu me enganei”, alusões a um certo Silvano Mingano e múltiplas utilizações do advérbio de proximidade “quase”. Com muita espirituosidade e competência no uso da improvisação, o filme nos coloca num terreno ambíguo e provocante, o de uma brincadeira crítica que é quase um filme de gênero, quase um filme-processo, quase um filme doméstico, quase uma experiência de representação. Mas é, acima de tudo, uma mentirada gostosa de assistir, do primeiro ao último close de Anna Karinne.

 

Obs.: Aproveite para assistir ao curta Que Cavação é Essa?, de Luís Rocha Melo e Estevão Garcia no site da revista Filme Cultura: http://filmecultura.org.br/04/2013/que-cavacao-e-essa/