Filmes como oposição a formas de vida: o cinema como sintoma e não cura.

08/01/2015

por Marcelo Pedroso

Profundamente diferentes entre si, os três filmes ora postados no site do coletivo Alumbramento encontram convergência na experiência de um desconforto expresso com diferentes gradações em torno de universos que lhes são exteriores e que vão, através de arranjos singulares a cada obra, se interiorizar em imagens e sons responsáveis pela criação de zonas de contato entre corpos e espaços – ou entre cineastas e mundo, espectadores e filmes. Essas zonas de contato são muitas vezes incômodas e instáveis pois se inscrevem na dimensão do desafeto – contracorrente de uma das tendências aclamadas do cinema contemporâneo – e não produzem formas de vida mas opõem-se àquelas que desejam escrutinar em sua investida sobre o mundo histórico. O cinema, nestes casos, arde como uma febre, sintoma evidente do mal-estar experimentado, e não se preocupa em buscar remédio, conciliação ou cura.

 

Para falar sobre violência e diferenciar sua manifestação objetiva da subjetiva, Slavoj Zizek recorre ao relato de uma história ocorrida na convulsiva Rússia dos anos que se seguiram à revolução de bolchevique. É a história do aristocrata Nikolaï Lossky e sua família. Gozando de absoluto conforto material, eles viviam plenamente integrados aos costumes de sua gente, cultivando hábitos tidos como saudáveis e comuns a seus semelhantes. Iam à igreja, eram cordatos com os empregados, distinguiam-se pelos bons modos e dedicavam-se às mais elevadas formas artísticas da época num sincero esforço para refinar o espírito. Uma vida harmoniosamente celebrada em torno de valores positivados como bons.

 

Qual não foi a surpresa de Nikolaï Lossky quando ele e sua família foram sumariamente banidos do país após a deflagração do processo revolucionário. Os Losskys integravam uma lista publicada em 1922 com os nomes de intelectuais que deviam ser proscritos e Nikolaï não aceitava o fato de que seus valores tão universalmente reconhecidos como bons e idoneamente praticados pela família passassem a ser combatidos como se eles houvessem cometido algum crime abominável. Acontece que, pondera Zizek, embora completamente pautado por práticas consideradas boas entre seus pares, o modo de vida dos Losskys era incompatível com o ideal coletivo dos bolcheviques. Tratava-se de um modo de vida gerador de violência subjetiva.

 

Diferente da violência objetiva, aquela que é praticada fisicamente e se materializa em espancamentos, estupros ou assassinatos, a violência subjetiva é sistêmica, está ligada a relações de exploração e dominação e se manifesta até nas formas de coerção mais sutis, comumente exercidas por agentes sociais. No caso dos Losskys, a dimensão subjetiva da violência praticada por seu modo de vida seria assinalada se aceito o pressuposto de que a riqueza que sustentava seus luxuosos bailes de gala era produzida pelo trabalho exaustivo de uma multidão de miseráveis que vivia completamente privada de condições materiais dignas. Ou pelo menos assim pensavam os bolcheviques.

 

Seria um exercício interessante pensar o filme Tribuna de honra (Aline Portugal, Julia de Simone, Marcelo Grabowski, Ricardo Pretti) à luz da perspectiva da violência subjetiva exercida pelo modo de vida ali expresso. Aquele pequeno mundo presente nas imagens, tão fechado sobre si mesmo para os eleitos que podem degustar de seus supostos prazeres, diz respeito, de modo muito particular, à parcela menor da população brasileira isolada pela assimétrica clivagem em que é fundada nossa sociedade. Possivelmente cobiçado por outros setores da população, aquele modo de vida precisa reafirmar seu isolamento, físico e simbólico, também como forma de valorar sua própria existência.

 

É nesses termos que estes eventos desta natureza incorporam noções como as de “exclusivo” ou “vip” – uma reserva de deleites destinados aos sujeitos que podem, seja por descenderem de uma linhagem privilegiada, seja por ingresso adquirido, usufruírem daqueles espaços. Este isolamento dos corpos se constrói, além de pelas claras barreiras físicas, também a partir dos signos distintivos que os revestem: suas roupas – ou, se quisermos atentar para a peça de indumentária especialmente cara ao filme, seus chapeus.

 

Pois é, curiosa ou talvez até ironicamente, através dos chapeus que somos transportados para aquela pequena economia dos prazeres agregadora do Pib fluminense. Como num discreto passe de mágica, passamos a fazer parte do petit comité e passeamos flutuantes por entre os sorrisos e taças que adornam o recinto. O lacre do mundo inviolável e restritivo que administra severamente a circulação dos corpos é rompido pelo gesto dos cineastas. Ao colocar a câmera sobre os chapeus, eles fundam um pacto insólito e controverso: um pacto que visa a gerar imagens não-pactuadas.

 

Uma inusitada arquitetura de fusão maquínica e corporal é então acionada: a engrenagem se move criando personagens-câmera que são ao mesmo tempo condensadores e ativadores de experiências que oscilam entre a presença, a convivência e a observação voyeurística. Precisamente aqui, a dicotomia clássica do documentário pautada pelas imagens-símbolo da mosca na parede e da mosca na sopa deixa de fazer sentido enquanto composição envolvendo instâncias mutuamente excludentes e passa a dar lugar a uma escrita que é simultaneamente ativa e passiva, implícita e explícita.

 

Nesta insuspeita flânerie voyeurística oferecida pelos personagens-chapeu rendados, quantos Nikolaïs Losskys cariocas atravessaram nosso caminho? Quantas madames Losskys tupiniquins nos sorriram com seus vitrificados rostos cirurgiados? Não saberemos, pois não os conheceremos. Estamos ali de carona para um ou dois drinques roubados do chapeu – ou quem sabe um breve lampejo de esperança na vitória de seu cavalo na pista. Durante alguns instantes, tomamos parte daquele mundo, deixamo-nos envolver por ele, nos embriagamos daquele champanhe mesmo sem o experimentar de fato.

 

O cinema não pode e não deve ser um tribunal, mas muitas vezes somos levados a julgar as pessoas que vemos na tela, assim como julgamos as imagens em si e as pessoas que respondem por sua existência (particularmente os realizadores). Qualquer filme coloca quem o faz e quem a ele assiste diante de um emaranhado caminho de possibilidades e interditos que correspondem àquilo que aceitamos ver ou mostrar, desejamos revelar ou esconder. Tenho a impressão de que essa questão se torna particularmente delicada quando, num documentário como Tribuna de honra, os cineastas não estão implicados com a alteridade expressa nas imagens por uma relação de convergência política ou de afetos.

 

Mostrar ou ocultar se tornam então operações mais do que críticas, consomem além dos sentimentos toda uma racionalidade que tensiona a moral para decidir qual o limite preciso até onde pode ir o gesto de articulação das imagens. Tribuna de honra opta pela sobriedade: os chapeus ciclópicos oferecem um sobrevoo sobre os espaços e as pessoas observadas. A montagem segue o mesmo compasso, respeita a cena, seleciona e justapõe os eventos seguindo uma escala de temperaturas e cores não conflituosas: a mosca parece preferir se recolher à parede.

 

Mas deve haver algo inadmíssivel e insuportável na ideia da retração do inseto – dos cineastas frente ao mundo observado – e é preciso interromper essa aparente calmaria e polidez, fazer ruir as aparências, jogar merda no ventilador como para se livrar de uma asfixia imposta pela contenção da montagem. A represa de sentimentos estoura de alguma forma numa transfiguração alucinada do equino de franja. Se a etiqueta é mesmo a ética da elite, os cineastas finalmente não se curvam a ela.

 

Tão menos comportado é o filme Os últimos raios de sol (Luiz Pretti). Por sua incontinência verbal furiosa, poderia ser visto como o enfant terrible da filmografia do Alumbramento. A profusão de vozes, gritos e espasmos são como sampleados por uma organização de signos que carrega a virulência disruptiva de um rap. Um filme feito sob o signo da revolta e angústia.

 

O homem com a câmera aqui não flana por um baile regado a canapés. Seu retiro é deliberado e introspectivo. Ele está afundado num invólucro de memórias e fantasmas que o atormentam e o libertam. Em Os últimos raios de sol, só resta aflição e desespero, é um filme que assiste à derrocada do próprio cinema e se debate em meio a este colapso, agoniza contemplando um eterno fim e procura entender o que deu, está dando ou sempre dará errado.

 

Se não há saída (do apartamento) e tampouco futuro (para o cinema), o filme convoca para si um arsenal de profecias e gritos trágicos que conclamam à insurgência, à irrequietude, ao imperativo da ação. Há como uma filiação a uma genealogia de vozes e sons que reclamam o isolamento vivido-imposto-desejado pelo apartamento como fuga e ataque ao mesmo tempo, lugar também de ferida, recuo e contaminação, cinefilia e conspiração.

 

O céu se torna uma grande ampulheta em que os grãos de areia são a luz que se esvai. Ele é tão indiferente e implacável quanto a multidão adormecida nos apartamentos – então o filme lhe atira pedras. Não se trata apenas de atingi-lo para tirá-lo de um confortável torpor, mas também de devolver impetuosamente a munição de que ele próprio – o filme, o cineasta, o cinema – foi alvo. O olhar panascópico da varanda que se instala sob o clamor da multidão invisível se revela como um espelho de dupla face, que reflete interior e exterior numa mesma figura enigmática e monocular, dedo em riste.

 

Já em Filme selvagem (Pedro Diógenes), deixamos os óculos 3D na entrada da sessão para perceber a imagem tal como ela é, uma miragem. Suas curvas e linhas estão borradas, seria um problema retiniano, da percepção, ou de um mundo desajustado. O alvo é claro, uma vida comum centrada sobre o simulacro, e o filme passa a atacar esse estado de aparências pelo esgarçamento das estruturas visuais.

 

O inimigo é atingido em seu interior, dentro de sua própria fortaleza – não a cidade, mas o shopping – e a narrativa reivindica para si uma faculdade enunciatória que o cinema parece vir abandonando paulatinamente. O Filme selvagem não tem medo de dizer seu nome e nem de dar nome às coisas. Autêntico libelo anarquista, vocifera palavras de ordem dirigidas aos espaços e pessoas que estão dentro e fora da imagem e da tela. Difícil aferir ou supor sua ressonância, mas o filme avança implacável até esbarrar na imagem do mistério que confirma e ao mesmo tempo ameaça sua tese.

 

A docilidade e espontaneidade com que a criança se entrega àquilo que vem sendo agressivamente combatido é uma imagem-sintoma que o filme não pode contornar. O cruzamento entre as dimensões pessoais e socio-estruturais da vida encontra ali seu nó górdio. Para onde vai o alento da música, a quem se dirige? A ternura dos últimos acordes termina em catástrofe, o tiroteio explode num parque de diversões encapsulado – ou definitivamente sepultado.