O QUE PODE O CORPO?

17/11/2014

 

O Corpo em 3 Curtas

Por Rodrigo Fischer

Por trás de uma máscara, tem uma pessoa. Uma mulher. Um homem. Por trás de uma máscara tem um corpo. Por trás de uma figura histórica, uma pessoa. Um corpo. Por trás de uma personagem, um ator. Por trás de um ator, um corpo. Por trás de uma armadura de ferro ou de um Lampião, um corpo. Por trás de um corpo espetacularizado, tem um corpo. Um corpo memória. Um corpo orgânico. Um corpo animal. Um corpo irracional.  Um corpo desdramatizado. Um corpo conflito. Um corpo presente. Um corpo afetivo.

 

É na materialidade desse corpo afetivo que muitos artistas, seja da performance, do teatro ou do cinema, estão interessados em investigar. É sobre isso que, direta ou indiretamente, os filmes Ossos de Helena Ignez, Lampião de Ythallo Rodrigues e Anti Performance de Daniel Lisboa tem em comum. A busca nesses filmes é por um corpo não psicológico, que deixa de ser refém da história e da razão,  para alcançar assim, uma materialidade potencialmente afetiva. Para o pensador Gilles Deleuze “É pelo corpo (e não por intermédio do corpo) que o cinema realiza as suas bodas com o espírito, com o pensamento”.

 

Um dos desafios do cinema contemporâneo, e que podemos identificar nos filmes dos três diretores já citados, é no modo como o cinema pode olhar para essa materialidade do corpo e revelar essa potência afetiva. Como a câmera deve olhar para esse corpo? Ainda nos anos sessenta, Rogérios Sganzerla fala sobre uma câmera cínica como aquela que busca olhar o corpo e os objetos sem predeterminações psicológicas ou dramáticas. Para ele, “a ‘câmera’ cínica é a ‘câmera’ que deixou de participar do movimento dramático, distanciou-se dele; olha-o indiferentemente, olha-o apenas”.

No curta Anti Performance, a câmera acompanha a viagem de Jayme Figura para São Paulo. Figura é um artista baiano que performa pelas ruas de Salvador com o corpo todo encoberto por panos, ferros e objetos encontrados no lixo. Figura busca se esconder. Esconder seu corpo e sua identidade. Nesse sentido suas ações seriam como uma anti performance, mas a armação metálica que deveria esconder seu corpo e sua identidade, tornam-se carne. A contradição de Figura é que ao tentar esconder, ele revela, ele se expõe, ele performa. Isso torna o filme belo pois a “câmera cínica” de Daniel Lisboa não força essa contradição, mas simplesmente apresenta as possíveis fragilidades dessa armadura que se apresenta como corpo orgânico.

 

“Um homem vestido de Lampião, com a aparência de Raul Seixas e rebolando ao som de uma música de Michael Jackson” poderia ser apenas mais um louco que encontramos nos centros das cidades. A espetacularização do cotidiano tornou-se algo tão comum que muitas vezes nos esquecemos de quanta poesia e transformação pode ter num acontecimento desses. O filme de Ythallo Rodrigues nos lembra disso e nos apresenta um corpo que transcende as figuras históricas de Raul e Lampião. Um corpo, que apesar de espetacularizado, é real e orgânico. Um corpo que não consegue afetar o ritmo frenético dos centros da cidade, mas consegue afetar outro corpo, assim como afetou Ythallo.

 

No curta Ossos, inspirado na montagem teatral A Classe Morta de Tadeusz Kantor, Helena Ignez encontra no corpo coletivo a grande força do seu trabalho. Os atores, como um coro trágico, integram seus corpos metaforicamente dilacerados, decompostos e mortos como um só corpo. Um corpo que grita repetidamente que “o ator, retrato nu do homem, está mais próximo do lixo que da eternidade”. Uma espécie de filme-manifesto que consegue em alguns momentos, apesar da estilização da atuação, revelar um corpo coletivo em sua transparência e nudez. Em outros momentos, os corpos, que deveriam ser mortos para assim nascer vida, caem em dramatizações que muitas vezes banalizam seu discurso poético e ideológico.

 

Se a pergunta “o que pode o corpo” é o motor para muitas investigações poéticas, os curtas de Helena, Ythallo e Daniel mostram que não existe limite para o corpo quando o olhar, a câmera, não determina seus limites.