VIDA

23/05/2014

Me foi pedido agora, em maio de 2014, para escrever algo sobre VIDA,  de Paula Gaitán que que “entra em cartaz” no site da Alumbramento nesse dia 22. Vi o filme pela primeira vez em 2008 na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e na ocasião escrevi um texto para a revista Cinética. Não me senti muito orgulhoso do que li. Foi escrito muito rapidamente no calor da hora em um festival que eu cobria freneticamente. Sobram e faltam palavras, não tem ritmo e é disforme. Mas apesar disso, existe nele um esforço de afinação da sensibilidade para lidar com um filme raro. Talvez por isso, por mais que a forma-texto seja precária e um pouco apressada, o crítico conseguiu capturar e traduzir as indagações mais desconcertantes do filme. O mérito é do filme, mas a sensibilidade é do crítico, esse outro no qual não me reconheço mais.  Hoje eu acessaria em um texto outras questões do filme, ainda que algumas coisas que nesse texto estão escritas me parecem muito interessantes.  Dessa vez o que mais me chamou a atenção é Maria Gladys falando de si mesma em frente ao espelho e a maneira como ela fala de si mesma como sendo um outro. Anti-narcísico. Ela lança mão de poemas para fazer um relato de si, poemas esses escritos em uma agenda, o que é significativo, dado que a poesia do filme (e de Gladys) está inscrita no cotidiano.

A cada sequência Maria Gladys evoca o passado e na sua performance, o presentifica. Mas como grande atriz, interpreta esse “outro” que não é mais ela, por isso encontra essas outras Marias Gladys via performance: com poesia, com dança com uma certa empostação memorialística que tem saudade, não rancor. Saudade é desapegada, rancor é ferida narcísica. Trazer o passado à tona como se aquela Maria Gladys dos cineastas novos e marginais vivesse hoje presa a um corpo que envelheceu, seria de um decadentismo tão triste que testemunhar isso em um filme seria constrangedor. Mas esse não é o caminho de Paula Gaitán e Maria Gladys. Quando digo que Gladys faz uma performance onde evoca essas outras Gladys, é porque VIDA não se esforça para fazer uma cinebiografia, mas se aplica  a esboçar variados retratos de uma atriz que carrega em si muitas mulheres. É um filme de Gladys, mas é também um filme Paula Gaitán, cineasta que evocatrabalha a memória por meio de poesia, pois essa é a maneira de acessar o sentimento que é experiência viva e presente ainda que pessoas e situações já não tenham mais existência objetiva. A poesia, então, seria esse esforço de transfigurar sentimentos em imagens concretas.

Há uma presença jovem e misteriosa em VIDA. Ela não fala, mas permanece ao lado de Maria Gladys e em alguns momentos, faz o que ela faz (fuma, dança). Não é notada por ela. A pergunta não é “quem é essa garota?”, mas “que presença é essa?”, aliás, “que qualidade de presença é essa?”. Sua opacidade é quase etérea, mas como o cinema só lida bem com ideias concretas ela é uma figura que materializa o sentimento da beleza e do vigor evocado por Gladys, como se fosse uma entidade, tão íntima de Maria Gladys ao ponto de se confundirem.

Francis Vogner dos Reis